A fé de um ateu

“A fé sem obras é morta”. Essa verdade bíblica põe por terra a fé de muitos que dizem “Senhor, senhor”, mas nada fazem para mudar o mundo. Oscar Niemeyer, ateu confesso e mestre em suas obras, nos provou essa verdade com sua vida. De sua história primorosa na busca do belo, do imponderável, do inimaginável para a lógica arquitetônica se desprende a alma insaciável de alguém que sempre acreditou na capacidade humana de transformar o mundo com sua ação. “É tolice dizer que as coisas são imutáveis. Tudo pode ser mudado. Só aquilo no qual acredito e certas convicções permanecem as mesmas”, dizia ele. Ora, o que são convicções? Manifestação de certa fé em algo, senão em si mesmo. O que é a fé? Convicção pura e simples. Se dizemos ter fé, dizemos acreditar. Se acreditamos, defendemos essa nossa crença com unhas e dentes, se preciso. Assim é o ateu: alguém que acredita em suas convicções e por isso as defende até o fim. Mesmo que esse fim não lhe forneça respostas claras, senão um encontro fatal com o Desconhecido. Ai então “tudo pode ser mudado”, restando na balança as obras boas que em vida realizamos. Em recente artigo no Jornal do Brasil, frei Leonardo Boff – amigo de Niemeyer – narrou-nos interessante diálogo que certa vez ambos travaram. Diz textualmente o artigo: “Nas nossas conversas, sentia alguém com uma profunda saudade de Deus. Invejava-me que, me tendo por inteligente, ainda assim acreditava em Deus, coisa que não conseguia. Mas eu o tranquilizava ao dizer: o importante não é crer ou não em Deus, mas viver com ética, amor, solidariedade e compaixão pelos que mais sofrem. Pois, na tarde da vida, o que conta mesmo são tais coisas. E nesse ponto ele estava muito bem colocado. Seu olhar se perdia ao longe, com leve brilho”… De fato, o grande arquiteto brasileiro defendia com unhas e dentes suas convicções comunistas. Por isso foi perseguido durante anos. Dizia: “Quando olho para traz, vejo que não fiz concessões e que segui o bom caminho. Isso é que me dá uma certa tranquilidade”. Tinha clareza em seus ideais. Introspectivo, gostava de meditar, contemplando o céu, a natureza. “Acho muito bom a pessoa se recolher e ficar pensando em si mesma, conversando com esse ser que tem dentro dela, que é nosso sósia. Eu converso com ele a vida inteira”. Eis uma grande lição para os que acreditam: conversar com o ser que temos dentro de nós. E nossa fé nos ensina que Deus habita em nós! Ateu, construiu muitas igrejas. Aliás, sua trajetória de sucesso começou com a polêmica igreja da Pampulha. Pelo estilo arrojado para a época, durante anos ficou fechada, pois muitos viam nela uma “blasfêmia profana contra o sagrado”. Veio depois a catedral de Brasília, um monumento humano quais mãos postas a oferecer a patena com o corpo eucarístico. Dela, um dia falou: “Na catedral evitei as soluções usuais das velhas catedrais escuras, lembrando o pecado. E, ao contrário, fiz escura a galeria de acesso à nave, e esta, toda iluminada, colorida, voltada com seus belos vitrais transparentes para os espaços infinitos”. Como não louvar a Deus com tais obras? Questionado sobre esse paradoxo profissional – um ateu construtor de muitas igrejas – respondeu: “As pessoas se espantam pelo fato de, mesmo sendo comunista, me interessar pelas igrejas. É coisa natural. Eu morava com meus avós, que eram religiosos. Tinha até missa na minha casa. Fui criado num clima assim. Esse passado junto da família me deixou com a ideia de que os católicos são bons, que querem melhorar a vida e fazer um mundo melhor”. Eis aqui um belo puxão de orelhas de um ateu para muitos cristãos. Fazer um mundo melhor não é contentar-se com o pouco que fazemos, mas, como conclui nosso artista: “Tenho que me preocupar em criar uma atmosfera serena para o crente falar com Deus”. Essa atmosfera deve permear a vida, a maior e mais belas das catedrais com que o grande Arquiteto nos presenteou. WAGNER PEDRO MENEZES wagner@meac.com.br

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