A Liturgia é um organismo vivo. Se no passado era definida por alguns teólogos como parte do direito canônico, após o Concílio Vaticano II fora legitimada uma nova abordagem que a considera contendo verdadeiro e próprio estatuto epistemológico, o que lhe garante, também, uma posição importante dentro das disciplinas teológicas. Há quem enxergue, inclusive, o século XX como o tempo que propiciou o nascimento da teologia litúrgica. De todos os modos, a partir da promulgação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia (Sacrosanctum Concilium), as celebrações da Igreja já não são vistas, primeiramente, como uma experiência a normatizar, cuja responsabilidade repousa sobre a autoridade eclesiástica. Elas passam a ser interpretadas, sobretudo, como história a se assimilar e exprimir, ou seja, a História da Salvação, que nos é revelada em plenitude na pessoa e ministério de Jesus. O núcleo desta Historia Salutis é o encontro do ser humano com o Mistério de Deus, que se dá mediante a encarnação, paixão, morte e ressurreição do Senhor, o Mistério Pascal: Ao Pai, pelo Filho na unidade do Espírito Santo. Essa fórmula doxológica, muito antiga na Igreja, revela e sintetiza como se dá a atividade da Trindade na história da salvação: “O Pai é a origem e também o fim de toda a criação e salvação; Jesus Cristo é o sacramento que revela o Pai e o mediador que reconcilia a humanidade com Deus; o Espírito Santo é o poder por meio do qual Cristo eleva aqueles que caíram e os conduz ao Pai.”1 É importante percebermos a profunda mudança conceitual que se opera com o Concílio Vaticano II, uma vez que a discussão sobre a normatividade (direito) da liturgia será ainda uma questão importante no pós-concilio. Passa-se de uma compreensão meramente jurídica a uma perspectiva teológica. Se antes a Liturgia era concebida como “o conjunto de ritos legítimos, exteriores e públicos, ordenados pela competente autoridade da Igreja”2 , agora é toda a vida do Filho, da Igreja e do cristão, seguindo as intuições de Dom Piero Marini numa leitura teológico-espiritual da Sacrosanctum Concilium. Neste sentido, a normatividade das ações litúrgicas se submete e desdobra a partir dessa nova perspectiva conceitual. Implica assumir as leis que regulam a prática ritual no horizonte da natureza mesma da Liturgia e não como uma legislação que lhe é extrínseca, baseada tão somente na autoridade eclesiástica que a funda e fundamenta. O Direito Litúrgico em vigor tem por base elementar a nova perspectiva teológica a respeito da sagrada litúrgica e se destina, em grande parte, a manter aceso o objetivo pastoral e espiritual das celebrações da Igreja. Também entra em questão a perspectiva eclesiológica colegial, reafirmada e posta em prática pelo atual Pontífice, Francisco. Quer-se um exercício de corresponsabilidade na direção do Povo de Deus, cujas celebrações exercem um papel essencial, ao orientar o coração dos fieis para o Mistério de Cristo.3 É partir destas bases que se pode compreender a importância de um Diretório Litúrgico para a Igreja Local (Dioceses). Segundo a constituição dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium 13 e 23, a Diocese ou Igreja Particular é realização concreta da única Igreja de Cristo e é nela que se torna visível sua catolicidade. O Concílio afirma com segurança que a legitimidade das tradições próprias que cada (arqui)Diocese desenvolve, como testemunho rico e vasto do mesmo Evangelho. A Congregação para a Doutrina da Fé, mediante o documento Communionis notio, de 1992, lembra que “a Igreja universal é o Corpo das Igrejas” e estas Igreja Particulares são expressão da Igreja Universal em seu mistério essencial: “são expressões particulares da uma e única Igreja de jesus Cristo.”4 Uma vez que a Igreja Universal reconhece o antigo direito de cada Igreja particular, sobretudo as antigas igrejas patriarcais, de possuir leis, ritos e patrimônios espirituais e teológicos próprios, se pode compreender também que – mesmo sem se tratar de ritos distintos – as Igrejas particulares também possuam tradições próprias, desde que não firam a única fé da Igreja. A própria Sacrosanctum Concilium prevê a existência e incorporação de costumes locais à Liturgia, algo a que o Bispo Diocesano teve tratar com solicitude e dirigir com o auxílio de uma Comissão formada por especialistas em ciência litúrgica.5 Pe. Márcio Pimentel Liturgista —————————————– 1 CHUPUNGCO, Anscar J. Nozione di Liturgia. In. CHUPUNGCO, Anscar J. (dir.) Scientia Liturgica. Manuale de Liturgia. Vol I, Introduzione ala Liturgia. Roma: Piemme, 2003, p. 21. 2 MONTAN, Agostino. Il “diritto litúrgico”, significato e intepretazioni. In. Rivista LIturgica, Diritto e Liturgia. Ano XCVIII, fasc 5. Pádova: Edizioni Messaggero Padova, Abbazia S. Giustina, 2011, p.744(20). 3 Cf. saudação presidencial no Ordo Missae: “O Senhor que encaminha nossos corações para o amor de Deus e para a constância de Cristo esteja convosco.” 4 Communionis notio, n. 9. In. Denziger-Hünermann. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas e Loyola, 2007, n. 4922. 5 Cf. Sacrosanctum Concilium n. 40.44-46. –