ASSUMIR NOSSAS TORMENTAS

 Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Companhia de Jesus),

 

 

 

“A barca, já longe da terra, era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário” (Mt 14,24)

 

Poderíamos começar nossa reflexão sobre o Evangelho, indicado para a liturgia deste domingo, com estas inquietantes perguntas: “Que farias tu se não tivesses medo? Que fariamos nós, seguidores e seguido-ras deJesus, se não fôssemos afetados pelo medo?”

Chegamos à pós-modernidade com uma enorme carga de medo; somos atormentados o tempo todo pelo medo; um medo sem nome, um fantasma sem rosto, escuro como uma sombra e rápido como uma tempestade; medo cruel que afeta os corajosos e agride os ousados. Não existe depósito de munição mais potencialmente explosivo do que os estoques de medo guardados nas escuras profundezas do ser humano. Há um verdadeiro pânico permanente envolvendo grupos, pessoas e instituições.

Podemos afirmar que o centro dos evangelhos de Marcos e Mateus é uma espécie de relato de navegações e tormentas. Essa recordação de Jesus que acompanha seus amigos no barco e que “acalma” sua vida tormentosa (tormenta de dentro ou de fora?) está no fundo da tradição cristã.

O medo, a angústia, a insegurança , o espanto dos apóstolos, o não saber quê fazer na tormenta, é parte de nossa condição humana. Isso não nos faz menos pessoas, mas nos faz mais próximos, se somos simples e humildes.

 

Quando lemos com um pouco mais de atenção os capítulos centrais do Evangelho de Mateus passamos a ter convicção de que Jesus está continuamente “passando para outra margem” e convidando seus discípulos a fazerem o mesmo. Poderíamos dizer que o seguimentoimplica permanente travessia de uma margem à outra. Isto nos move a pensar que esta passagem não é geográfica; nesse deslocamento há algo mais profundo, ao menos um convite à não instalação. Nenhuma margem pode se converter em lugar de “parada”, todas são lugares de passagem.

Mateus realça que Jesus “forçou” os seus discípulos a entrarem na barca. Isto indica que não queriam ir embora e foi necessário obriga-los a se retirarem dali. Por quê? Sem dúvida, porque ao verem a oportunidade de que o Mestre se convertesse em rei, não queriam perder a ocasião de ter algo de poder, de vaidade, de prestígio. Compreende-se, assim, o mandato de Jesus a passar para a “outra margem”, a deixar de lado as solicitações do ter, do poder… para buscar o caminho do despojamento e da partilha.

A atualidade do relato é patente: quando os discípulos de Jesus não se contentam em ser o que são, mas buscam poder e prestígio, “faz-se noite”, não avançam, a tormenta se amplia, vêemem Jesus um fantasma que lhes dá medo, Pedro se afunda…

Seguir Jesus implica estar continuamente passando para a outra margem; passar para o outro diferente, não permanecer fechado em si mesmo. “Passar para o outro” como condição necessária para “passar para Deus”. Aquele que se instala, se perde, envolve-se na tormenta. É preciso buscar sempre novos espaços e novos horizontes.E toda travessia implica “correr riscos”.

 

Há momentos em que daríamos tudo por uma chance de pedir a Deus para não corrermos riscos. Mas o risco é necessário. É importante poder enfrentar as dificuldades, o desconhecido e o incerto.

As experiências obscuras, as tribulações, as tempestades… são inerentes à fé cristã; estão presentes em todas as pessoas. Mas isso deve nos permitir renovar constantemente uma confiança e uma união com o Senhor na realidade mais cotidiana.

Percebemos que algumas pessoas fazem opção pelo porto seguro das falsas certezas e seguranças , mas outros preferem correr o risco do “mar agitado” e são capazes de construir o novo. As tempestades, o vento contrário, a escuridão da noite… “agitam a alma dentro de nós”.

Mas como enfrentar as turbulências que são frequentes no nosso processo de amadurecimento?

sensibilidade, a criatividade, o espírito de iniciativa são nossos maiores aliados.

Para desenvolver ao máximo nossas potencialidades, temos de enfrentar dilemas, encruzilhadas, perplexidades e responsabilidades. Isto nos faz mergulhar na vida, desenvolver nossas forças, ativar e despertar outras possibilidades escondidas no chão de nossa vida.

Na tradição inaciana “formar-se é provar-se”. Só aquele que é posto à prova em sua fé e em suas convicções, se forma, cresce e amadurece.

Com certeza, muitos de nós já tivemos a experiência de que, quando fomos capazes de superar nossos medos e tomar decisões audazes diante de um futuro incerto, então se despertaram, no nosso eu mais profundo, outros recursos e capacidades que ignorávamos ter;no final, nossa vida se viu enriquecida de uma maneira tal que jamais poderíamos imaginar.

 

Do meio dos ventos contrários e do mar agitado brota um forte apelo:Não tenhais medo”.Um apelo com força libertadora; é a força da voz de Alguém cuja presença alavanca o passo para a travessia: o passo da mudança, o passo da audácia de sonhar de novo, o passo para vislumbrar a outra margem…

Com o Senhor no barco de nossa vida, vamos além, fazemos a travessia…Ele é ao mesmo tempo: mestre, timoneiro, mastro, vela, horizonte, esperança, ar, mar, adorável presença…Salvador…

Os conflitos mais profundos do nosso coração são pacificados com o atrevimento da coragem, com a força da fé, com a imaginação solta, com a criatividade livre e desimpedida…

Por isso, é preciso rastrear, identificar, compreender e desterrar os medos de nossos corações.

É urgente substituir a cultura do medo pela cultura da coragem. coragem desbloqueia energias, impulsiona decisões, levanta projetos, reacende a criatividade e o gosto por viver.

Sem a superação cotidiana desse medo, nossa missão estará comprometida; perderá sua força inovadora, garantida pela novidade do Projeto de Deus. O compromisso com o Reino requer de todos uma forte dose de coragem e uma alma ágil, animada e vivificada pelo sabor da aventura e da novidade.

Esperança e dúvida, temor e coragem, criatividade e rotina, andam juntas.

Tornamo-nos corajosos quando tomamos a decisão de arriscar.

msotw9_temp0Vencido o medo, nós nos tornaremos autênticos(as), criativos(as) e audazes seguidores(as) de Jesus.“Quem for medroso e tímido volte para trás” (Jz. 7,3)

 

Texto bíblico:Mt. 14,22-33

 

Na oração: Para fazer a “travessia da vida” será necessário descobrir:

                   – quantos fantasmas há em sua vida que o paralisam, o impedem de avançar, o travam na hora de tomar decisões?

– Quantos fantasmas o impedem crescer, assumir os desafios, ser criativo…

– Numa dimensão mais ampla, quantos fantasmas há na igreja que não a deixam rejuvenescer-se, que a impedem viver um processo de contínua mudança, que a fazem suspeitar de tudo, que a fazem surda aos chamados de Deus no meio das tormentas da atualidade?

 

A LUZ QUE NOS TRANS-FIGURA

 

“O seu rosto brilhou como o sol e as suas vestes ficaram brancas como a luz”(Mt 17,2)

 

“Saí de vossas trevas! Deixai para trás a segurança do vale e empreendei sem medo a subida ao mon-te, porque lá no alto a luz vos espera!”. Este poderia ser o apelo do evangelho da Transfiguração, que pede de nós mobilidade para sair das falsas seguranças de uma vida sem horizontes.

De fato, há em nós uma força atrofiadora que nos faz preferir a acomodação, permanecendo tranquilos, perdidos no imediato e alheios à capacidade de transfiguração que se esconde por detrás da aparente normalidade das pessoas e das coisas.

“O mundo está cheio de esplendor espiritual e de segredos maravilhosos, mas basta um pequeno cisco sobre nossos olhos para que tudo fique escondido”(Baal Sem Tov).

Por isso, no Evangelho de hoje, e com diferentes graus de intensidade, o evangelista sai da esfera plana das descrições precisas e exatas e se expressa na linguagem do excessivo, do simbólico, do totalizante:“seu rosto brilhou como o sol”, “suas roupas ficaram brilhantes como a luz”, “uma nuvem lumi-nosa os cobriu”…

E como contraste escuro frente a tanta luz, três pobres homens assustados que balbuciam disparates, que preferiam dormir e ficar aí junto a esta situação tão surpreendente.

 

Transfiguração está nos dizendo quem era realmente Jesus e quem somos realmente cada um de nós.

Essa cena que Mateus relata é um símbolo das muitas “experiências de transfiguração” que todos experimentamos. A vida diária tende a fazer-se cinza, monótona, cansada, e a deixar-nos desanimados, sem forças para caminhar. Mas, eis que surgem momentos especiais, com frequência inesperados, em que uma luz atravessa nosso coração, e os olhos de nossa interioridade nos permitem ver muito mais longe e muito mais fundo daquilo que estávamos acostumados a olhar até esse momento.

A realidade é a mesma, mas nos aparece transfigurada, com outra figura, revelando sua dimensão interior, essa na qual tínhamos acreditado, mas que com o cansaço do caminhar tínhamos esquecido. Essas experiências, verdadeiramente espirituais, nos permitem renovar nossas energias e, inclusive, entusias-mar-nos para continuar caminhando, com o sentimento de“como se víssemos o Invisível”.

 

Aquele Monte (Tabor) foi um espaço instigante para Jesus, lugar alto de sua experiência radical, de onde Ele podia ver os problemas da humanidade, para senti-los, para assumi-los e mudar… O mesmo Jesus nos faz subir à grande montanha para que vejamos as coisas de outra forma, de outra perspectiva…

É preciso, de vez em quando, tomar distância e nos afastar do cotidiano rotineiro e atrofiado, para ampliar nossa visão e contemplar o drama humano; é decisivo nos situar diante do calor de Deus (sarça ardente) para desvelar nossa verdadeira identidade. Somente assim a Montanhanos transfigurará para que nos empenhemos no serviço em favor dos “desfigurados” do mundo.

Todos nós aspiramos por experiências como a dos discípulos de Jesus no alto do Tabor. Mas nós não podemos nos encontrar com Jesus no Tabor da Galiléia. Necessitamos buscar nosso Tabor particular,os rincões de nossa morada interior onde estão as fontes que mais forças nos dão, as luzes com as quais nos sintonizamos para iluminar e dar um novo significado ao nosso compromisso primeiro.

Todos nós somos portadores de uma luz que procede de dentro, uma iluminação interior, que só aquele que vive a partir de sua própria interioridade consegue ter acesso a ela.

 

Ao relatar suas experiências espirituais, muitos místicos fazem referência a uma luz que ilumina com força seu interior. É uma graça que não se revela rara, pois temos consciência que “Deus é luz” e que o mesmo Jesus se definiu como a “Luz do mundo”. Somos envolvidos providencialmente por esta expansiva Luz.

Todas as pessoas que fizeram esta experiência de encontro com o “Deus da Luz”,puseram os meios para fazer a viagem interior e ativar a“faísca da luz divina” ali presente. Na medida em que se deixaram inva-dir por essa luz, aproximaram-se cada vez mais dela para vivê-la com mais intensidade e para deixá-la refletir em seus rostos e ações. Por isso, foram pessoas de presenças originais e iluminantes em seu meio.

No ritmo do cotidiano, o dom imenso da luz passa desapercebido. Que o digam aqueles que não podem ver; que o digam aqueles que nunca puderam estremecer-se diante de um pôr-do-sol ou diante das cores vivas de uma pintura; que o digam aqueles que nunca puderam ver o brilho de uns olhos cheios de amor…

Na costumeira cotidianidade, o perigo de não valorizar a luz é evidente; no entanto, para quem contempla sua cotidianidade, a formosura da luz que se derrama sobre nós que vivemos neste planeta sem luz própria é a prova da generosidade de Deus para conosco.

 

Por isso mesmo, há vidas luminosas e vidas obscuras. Há pessoas cuja luz interiortrans-figura suas vidas: vivem na transparência da luz, seus gestos e atos são luminosos, admiram-se com o brilho da vida e desejam que tudo tenha esse brilho, iluminam com sensata positividade tudo o que acontece ao seu redor, colocam-se sempre na perspectiva de quem desfruta da cor e do amor no encontro com os outros…

O resplendor da Transfiguração brilha no interior de cada um de nós; não nos vemos vazios por dentro porque no mais profundo de nós, na morada mais interior, está o “sol de onde procede uma grande luz” (Santa Teresa de Jesus).

Deixar-se transfigurar. Somos seres de luz e nossa verdadeira transformação nasce de nosso interior.

Na Transfiguração, Jesus nos faz descobrir nosso verdadeiro ser, que vemos refletido n’Ele.

A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Deixar-se transfigurar é descentrar-se e expandir sua luz, para realizar aquele chamado único de Jesus dirigido a todos nós: “Vós sois a luz domundo”.

 

Transfiguração é festa da luz: Jesus é a Luz e no encontro com Sua Luz podemos ativar a tímida luz presente no nosso interior. Só assim podemos ampliar os espaços de luz em nossas vidas, para contagiar-nos de luz e para comunicar uma mística de luz em nosso entorno. Não se trata de falsas iluminações, mas de alcançar outra perspectiva de vida, mais luminosa, mais positiva, mais esperançada.

Para transitar na noite de nosso tempo precisamos buscar na TransfiguraçãoLuz que a ilumine e nos indique a direção e o sentido de nossa existência.

A “noite de nosso mundo”- carregada de tanta corrupção, violência, preconceito – pede pessoas marcadas pela experiência da Transfiguração, capazes de ver a presença d’Aquele que é a Luz no meio das realidades simples e cotidianas, no profundo do coração de cada ser humano, de cada realidade vivente, de cada palmo de nossa terra, no mistério insondável do universo grávido de graça.

Precisamos cultivar não só olhos que vejam a realidade, senão que sejam capazes de contemplar, no meio da noite, a presença da Luz: uma luz que brota das profundezas da realidade, do profundo do ser onde o Deus, Fonte de vida, sustenta tudo; uma luz que nos faz descobrir nosso ser essencial: filhos e filhas amados(as) e irmanados(as) com todos e com tudo.

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Texto bíblico:Mt. 17, 1-9

 

Na oração:Na nossa vida cristã não faltammomen-

tos de claridade e certeza, de alegria de luz.

E tudo depende de nossa visão, ou seja, se nosso olhar só capta o imediato e rasteiro que nos rodeia, ou se é capaz de descobrir o profundo e o luminoso em tudo… “Tudo é segundo a cor da lente com que se olha”.

– Como é seu olhar? Mais além do imediato que o rodeia? você é capaz de ver a presença da Luz, da profundidade de sentido, da presença de Deus… que há por detrás de cada circunstância?

– Você é capaz de transfigurar o olhar para captar a presença da luz que tudo re-significa?

 

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