“Perguntaram então: ‘Quem és, afinal? Temos que levar uma resposta para aqueles que nos enviaram. O que dizes de ti mesmo?” (Jo1,22)
Quem és? Quem sou? Quê dizes de ti mesmo? Que digo de mim mesmo?
Às vezes, o mais evidente e o mais próximo termina sendo o que menos conhecemos. Talvez acreditamos conhecer melhor os outros que a nós mesmos.
É possível que os enviados a João Batista tampouco pudessem dar razão de si mesmos, mas queriam saber quem era João e o que ele pensava de si mesmo.É possível que ninguém tenha ousado perguntar aos sacerdotes do Templo: “E vocês, quem são e que dizem de si mesmos?”
E, no entanto, é o Templo que se sente incomodado com a presençadesse estranho homem do deserto: sem ornamentos luxuosos, vestido de pele de camelo e levando uma vida de austeridade. Mas, uma vida que por si só fala de algo diferente, de algo novo.
João, nas areias do deserto, despertava inquietações e preocupações nos sacerdotes do Templo.
Esta é a verdadeira identidade de João; uma identidade expansiva e original que, ao mesmo tempo, era expressão de sua dimensão mais profunda e o movia a ser presença provocativa junto aos outros. Ele foi um homem inquieto, que passou a vida buscando e preparando o ambiente para acolher uma outra presençasurpreendente: “no meio de vós está aquele que vós não conheceis”.
Todo ser humano é aventureiro por essência; com ardor, ele anseia por uma causa última pela qual viver, um valor supremo que unifique a multiplicidade caótica de suas vivências e experiências, um projeto que mereça sua entrega radical. Para dar sentido à sua vida e realizar-se como pessoa, o ser humano necessita da auto-transcendência, isto é, viver para além de si mesmo, de seus impulsos, caprichos, desejos…
Carrega dentro de si a sede do infinito, a criatividade, a capacidade de romper fronteiras, os sonhos, a luz…
Portador de uma força que o arrasta para algo maior que ele… não se limita ao próprio mundo; traz uma aspiração profunda de ser pleno, de realização, de busca do “mais”…
Nesse sentido, o tempo do Advento vem ao encontro desse nossodesejo profundo e se apresenta como uma mediação para ajudar-nos nessa longa travessia em direção à própria identidade expansiva, deixando nosso estreito território e enveredando pelas terras desconhecidas do além-Jordão, onde João Batista também deixa transparecer sua verdadeira identidade:“eu sou a voz que grita no deserto”.
Ao ler o evangelho deste domingo e inspirando-nos na figura de João Batista, que revela quem ele é,pode-mos, também nós, reservar um tempo para nos contemplar por dentro; provavelmente nos sentiremos um grande desconhecido para nós mesmos.
Nossa existência não pode ser de anonimato e indefinição. Ela exige identidade clara e bem definida.
Normalmente confundimos a identidade com certas “marcas distintivas”: o nome, a profissão, a posição social, política ou religiosa, a função…
A identidade, no entanto,é dinâmica, histórica, fecunda, aberta ao desconhecido, aventureira…; é a capa-cidade de ir além de si e adiante de si. É poder ser invenção contínua de si mesmo, infinita trans-cendência. É ter projeto, ter futuro, sair de si…
Só transcende quem se aproxima da própria interioridade, do próprio coração.
“Descobrir-se a si mesmo” é ter consciência que no próprio interior há um movimento infinito de construção de si, de identidade em movimento… que se torna possível graças a um constante arrancar-se do imobilismo e da paralisia existencial, que impedem o fluxo da vida.
Só consegue aproximar-se da própria interioridade quem se desprende de defesas e projeções.
A Palavra de Deus, pronunciada sobre cada um de nós,des-vela e re-vela a nossa verdadeira e plena identidade: única, irrepetível, original. Essaidentidade vai sendo gestada ao longo de nossa história pessoal com os avanços e recuos, vitórias e fracassos, alegrias e sofrimentos… que vão pontilhando nossa existência e constituindo esse ser único,que somos cada um de nós.
Vivemos um contínuo chamado na vida e para a vida. A experiência de sentir que estamos insatisfeitos, o impulso em ativar desejos, cultivar aspirações sempre novas, procurar entender quem somos, o que devemos fazer, o que nos torna realmente felizes…, no fundo, tudo isso, é um contínuo desvelamento de nossa identidade.Nós realizaremos nossa vocação, sendo nós mesmos, com nosso modo de ser, nossas possibilidades, nossa originalidade. Ninguém poderá realizá-la por nós.
Ser fiel à própria identidade é ser fiel à nossa vocação.
Isso é identidade, ou seja, mergulhar no “fluxo da vida”,colocar-nos em movimento, caminhar para o nosso próprio interior.Afinal, somos um “ser de caminho”, um ser em marcha, em contínua peregrina-ção.Ter identidade é viver em contato com as raízes que nos sustentam. No percurso para dentro, clareia-se a visão sobre nós mesmos, sobre nossa originalidade e dignidade.
Há uma força de gravidade que nos atrai progressivamente para a interioridade, onde Deus nos espera e nos acolhe, e onde encontraremos a nossa própria identidade e a verdadeira paz.
“Que eu me conheça e que te conheça, Senhor! Quantas riquezas entesoura o homem em seu interior!
Mas de que lhe servem, se não se sondam e investigam?”(S. Agostinho)
Quem é que pode nos fazer acreditar que chegamos ao fim do caminho, que finalmente adquirimos uma identidade definitiva? Quem pode nos fazer dizer “eu sou?”.
Para a mentalidade bíblica, o ser humano é uma criação contínua, um processo permanente de “tornar-se pessoa”, passando por uma transfiguração, cada vez mais nova, de si e do mundo. O ser humano descobre a “existência” como identidade dinâmica, invenção constante de novas possibilidades de ser.
A identidade vai se des-velando à medida que do interior de cada um brota esta certeza:“Sou umtesouro, para mim e para os outros, e que não conseguia encontrar; sou um mistério da graça e do amor de Deus; sou alguém que se sentia vazio por dentro e descubro que estou habitado por Ele; sou alguém chamado, preferido de Deus; sou alguém que sente as mesmas fragilidades de todos e que, no entanto, sinto a fortaleza de Deus em mim; sou alguém que cada manhã pode desfrutar de um novo dia, posso sorrir para os demais; sou alguém que não sou a luz, mas posso ser testemunhada luz e indicar aos outros onde encontrá-la; sou alguém que ama profundamente a vida”…
Sem dar-nos conta, vamos encontrando verdadeiras maravilhas dentro de nós.
E enquanto buscamos reencontrar-nos interiormente, podemos nos sentir como o garimpeiro que, em meio ao cascalho e à profundidade da terra, esbarra-se com o veio de ouro.
Texto bíblico: Jo 1,6-8.19-28
Na oração: Deus garante a nossa identidade: pode-
mosser nós mesmos.Deus investiu pesado em cada um de nós. Mais ainda, fez do nosso coração sua morada.
Ter uma identidade significa assumir um lugar na história, uma missão a cumprir.
– Agora, sabendo o que Deus-Pai pensa de ti, poderias descobrir o teu nome? a tua identidade?
Quais os teus “sinais digitais divinos”?
– Que resposta darias de ti mesmo, agora, se um repórter te entrevistasse e te perguntasse: “Quem és tu?”
– O que colocarias na tua carteira de identidade que te diferenciasse de todas as outras pessoas?
– Quais seriam os teus sinais digitais mais originais?
Ser “João” é ser graça amorosa de Deus na vida e na história de tantas pessoas.