“De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos” Era uma vez um mosteiro no qual se respeitava escrupulosamente o silêncio. Mas cada dia, justamente às seis horas da tarde, quando os monges iniciavam a oração das Vésperas, aparecia um gato pela porta da igreja, miando fortemente. Diante da insistência e intensidade dos miados, o abade tomou uma decisão: pediu a um irmão que, das seis às sete da tarde, amarrasse o gato em uma pilastra que havia na entrada do mosteiro, longe da capela onde eles rezavam. E assim fazia o irmão, todas as tardes. O tempo passou. O abade faleceu e veio substituir-lhe um monge de outro convento distante, que logo percebeu o que cada tarde se fazia com o gato. E pediu para continuar a repetir o mesmo rito. Meses depois faleceu o gato. Imediatamente, o novo abade chamou o irmão e lhe disse: “Compre outro gato o quanto antes para amarrá-lo, cada tarde, das seis às sete horas, na coluna da entrada da igreja”. Este antigo conto mostra uma tendência bastante habitual no comportamento humano. Começamos fazendo algo porque nos parece útil, mas logo absolutizamos essa ação, convertendo-a em um rito ao qual atribuímos valor por si mesmo, à margem de sua utilidade. Quando isso acontece, dá a impressão que o único motivo que nos leva a manter uma ação ou um comportamento é que “sempre se fez assim”. Se, além disso, a esse comportamento lhe é atribuído um caráter “religioso”, acrescenta-se outra razão poderosa para perpetuá-lo. E se, finalmente, a “autoridade religiosa” atribui a si o poder de controlá-lo e de vigiar seu cumprimento, temos todos os ingredientes tanto para o imobilismo como para situar a ação prescrita acima inclusive do valor e do bem da pessoa. Tudo isto está presente na cena evangélica de hoje. A atuação de Jesus é perigosa, pois Ele ensina a viver com aquela liberdade surpreendente.. Convém corrigi-la. Os fariseus e doutores da lei vigiavam rigorosamente o cumprimento das normas rituais: lavar as mãos antes de comer, a maneira certa de lavar os copos, jarras e vasilhas de cobre… Provavelmente, tais normas surgiram como uma medida de prevenção higiênica. O erro acontece quando se absolutiza e se acaba declarando “impuras” (religiosamente) às pessoas que não as cumprem. Desse modo, o que poderia ser uma prescrição saudável terminou se convertendo em uma arma de poder e em um pretexto gravemente discriminatório. Pretextos desse tipo foram utilizados (e se utilizam) com frequência, na sociedade e na Igreja, para estigmatizar determinadas pessoas ou grupos. E a autoridade, religiosa ou civil, se converte em “polícia das consciências”, acusando, condenando ou inclusive eliminando aqueles que se afastam da norma prescrita. “Quem sou eu para julgá-los?” (Papa Francisco). Será que Deus complica tanto nossa vida com o peso das normas, proibições, culpas…? Mais uma vez, frente às armadilhas da religião, a atitude de Jesus é claríssima. Custa-nos entender como há pessoas que professam ser suas seguidoras e continuam absolutizando normas, ritos, crenças…, acima do bem das pessoas, às quais não duvidam em anatematizar e desqualificar do modo mais veemente. No entanto, o culto que agrada a Deus nasce do coração, da adesão interior, desse nosso centro íntimo de onde nascem nossas decisões e projetos. Em toda religião há tradições que são “humanas”: normas, costumes, ritos, devoções… que nasceram para ajudar a viver a experiência religiosa em uma determinada cultura. Podem fazer bem; mas podem causar muito dano quando nos dispersam e nos afastam da Palavra de Deus. Elas nunca devem ter a primazia. Não podemos esquecer nunca do que é essencial. Neste sentido, Jesus foi um “transgressor” porque sua missão estava centrada em “destravar” a vida das pessoas pelo peso das tradições e ritos religiosos. Suas palavras, tomadas de Isaías, apontam diretamente para o coração: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos”. Tais palavras teriam que se converter, para o seguidor de Jesus, em um questionamento sempre atual. On-de creio encontrar Deus? Nas normas, nos ritos, nas crenças… ou no coração e na vida? Sem dúvida, o comportamento pessoal será radicalmente diferente se identificamos a Deus com nossas crenças e ritos ou se o experimentamos no mais profundo de nosso ser e no serviço em favor da vida. No primeiro caso, haverá fanatismo-legalismo-moralismo; no segundo, respeito-amor-compaixão-serviço. O decisivo é o “lugar” onde vivemos a experiência de encontro com Deus. É verdade que o próprio Jesus nos advertiu que Ele não veio a este mundo para “suprimir” a Lei e os Profetas, ou para acabar com a “religião”, mas para transformar qualitativamente, para “levar à plenitude” a antiga religião (Mt 5,17). Em outras palavras, o que Jesus deixou claro, com sua forma de viver e com seus ensinamentos, é que o centro da religião não está nem no templo, nem nos rituais, nem no sagrado, nem na submissão às normas religiosas, nem nos dogmas e suas teologias, mas que está na práxis, numa ética, num projeto de vida, numa forma de viver, que se centra e se concentra na bondade para com todos de maneira igual, no amor sem limitações nem condicionamentos, no serviço gratuito e generoso. Isso se traduz e se realiza no respeito à vida humana, na defesa da vida, da dignidade e dos direitos de todos. Isto quer dizer que Jesus deslocou a religião, tirando-a do templo, dos sacerdotes e seus hierarcas, separando-a dos ritos, antepondo-a ao sagrado. E a colocou no centro da vida. Mais ainda, a ampliou e a estendeu à vida inteira, não reduzindo-a a determinados momentos da vida, a espaços separados, a gestos privilegiados, a objetos e personagens com quem é preciso manter uma relação de abaixamento e submissão. É assim como Jesus revela e expressa a “humanização de Deus”. Seu modo livre de ser e viver nos revela “a humanidade de Deus”. Texto bíblico: Mc 7,1-8.14-15.21-23 Na oração: sua vivência cristã está mais centrada no cumprimento de normas, ritos, leis… ou no serviço e cui- dado para com os outros? Seu “culto” a Deus é expressão de um compromisso ou um rito vazio, assumido por imposição e medo? Sua experiência de encontro com Deus só se dá nos momentos de celebração ou no ritmo da vida? Pe. Adroaldo Palaoro, SJ (Companhia de Jesus)