Imaginemos uma adega que contivesse os melhores vinhos do mundo, onde as garrafas não possuíssem um rótulo. Sem a pequena explicação que o rótulo nos traz a respeito da qualidade das uvas, o volume de álcool, sua proveniência, muito difícil seria distinguirmos os vinhos. Ora, algo semelhante deu-se com a doutrina que Nosso Senhor Jesus Cristo veio trazer. Uma doutrina carregada de potência, Bom Pastor – Paroquia Santo Eustaquio – Paris..jpgque nossa pobre e humana inteligência, por mais elevada que seja, jamais poderia compreender. Como transmiti-la aos homens? O Divino Pedagogo quis, assim, colocar um rótulo diante deste extraordinário vinho para nos fazer entender sua doutrina: as parábolas. Analisemos com cuidado uma de suas Divinas Parábolas e tiremos dela uma importante lição. Havia um homem rico, que se vestia com roupas finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias. Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão, à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E, além disso, vinham os cachorros lamber suas feridas. Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado. Na região dos mortos, no meio dos tormentos, o rico levantou os olhos e viu de longe a Abraão, com Lázaro ao seu lado. Então gritou: ‘Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque sofro muito nestas chamas’. Mas Abraão respondeu: ‘Filho, lembra-te que tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, por sua vez, os males. Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. E, além disso, há um grande abismo entre nós; por mais que alguém desejasse, não poderia passar daqui para junto de vós, e nem os daí poderiam atravessar até nós’. O rico insistiu: ‘Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa do meu pai, porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não venham também eles para este lugar de tormento’. Mas Abraão respondeu: ‘Eles têm Moisés e os Profetas, que os escutem!’ O rico insistiu: ‘Não, Pai Abraão, mas se um dos mortos for até eles, certamente vão se converter’. Mas Abraão lhe disse: ‘Se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos'”. (Lc 16, 19-21) Um dos assuntos mais polêmicos da atualidade é justamente este: ser rico ou ser pobre. Segundo a concepção de Marx, deve existir uma reivindicação e luta para que a classe mais baixa se iguale à classe alta e, desse modo, ninguém se sinta humilhado. Estaria Nosso Senhor Jesus Cristo favorecendo essa luta de classes? Como entender esta parábola? A primeira indagação que ela nos sugere é esta: “Vai-se para o inferno pelo simples fato de ser rico? No Céu, só entram os mendigos? Toda riqueza é um mal e toda miséria, um bem?” A este respeito explica Santo Ambrósio: “Nem toda pobreza é santa e nem todas as riquezas são pecaminosas; mas assim como a luxúria desonra as riquezas, assim a santidade recomenda a pobreza”.2 Na verdade, as riquezas de si são neutras. O problema está no bom ou no mau uso que delas se faça. “O mesmo se deve dizer da pobreza: não é ela boa, nem má. Para qualificá-la é necessário saber com que disposição interior foi aceita”.3 Nosso Senhor Jesus Cristo exalta nesta parábola aquele que, diante da pobreza material, aceita-a com resignação e, ao ver aqueles que estão em melhores condições, louva a Deus. E o rico? Avarento, egoísta, apegado a si mesmo e ao dinheiro, preocupado com seus próprios interesses, pouco se importava com o pobre Lázaro que vivia na soleira de sua porta. Seu duro coração não sentia nenhuma compaixão. Pelo contrário, desprezava-o. De fato, explana Santo Agostinho: “A insaciável avareza dos ricos não teme a Deus, nem respeita ao homem, nem perdoa o pai, nem guarda fidelidade ao amigo; oprime a viúva e se apodera dos bens do órfão”.4 Neste estado de alma, morrem ambos: “Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado” (Lc 16, 22). O pobre que tinha sofrido todos os infortúnios nesta terra, foi premiado na outra vida. O rico, porém, que tinha todas as comodidades e os confortos neste mundo, mereceu uma eternidade de tormentos. “Quantas e quantas vezes o rico não deve ter sentido, dentro de si, a voz da consciência recriminando lhe o apego desregrado pelas roupas, pelos prazeres excessivos da mesa e, sobretudo, pelo dinheiro! Lázaro à sua porta era um dom de Deus, estimulando-o à prática da caridade. Mas ele preferiu os bens deste mundo a ponto de dar as costas a Deus”.5 Desta maneira, compreende-se porque fora lançado ao inferno. Esclarece ainda São João Crisóstomo: “Não era atormentado porque tinha sido rico, mas porque não tinha sido compassivo”.6 E se o pobre não estivesse resignado com sua condição, e o rico fosse virtuoso e generoso? Para responder a essa pergunta vejamos como Mons. João Clá Dias 7, de forma magistral, imagina a parábola do pobre e do rico com os papéis das duas figuras principais invertidos: “Imaginemos o rico cheio de compaixão por Lázaro, a ponto de contratar um médico para curar-lhe as chagas, comprar-lhe os remédios, conseguir- lhe um bom abrigo e proporcionar-lhe deliciosos alimentos. Ademais, procurando cercá-lo de afetuosaspobre Lazaro.jpg atenções, chegando a rezar várias vezes ao dia por sua saúde, como também por sua eterna salvação. Por outro lado, suponhamos um Lázaro que teria a alma mais ulcerada do que seu corpo, pois se consumiria de inveja dos bens do rico e, revoltado contra tudo, contra todos e contra o próprio Deus, cobriria de injúrias o seu benfeitor, desejando-lhe a desgraça e até a morte. A cada ato de comiseração e estima da parte do rico, corresponderia uma reação mal-educada e ressentida de Lázaro. Este só se acalmaria quando obtivesse toda a fortuna daquele, e, para isto, estaria disposto a instigar seu ódio em muitos outros. E concluía Mons. João: “Se, nesse estado de alma, morressem ambos, qual seria o destino eterno de cada um?”8 Certamente o rico seria levado para gozar da felicidade eterna junto com Abraão e o pobre Lázaro seria condenado às penas do inferno. Assim, diante desta suposição, não podemos tomar a pobreza como um meio de salvação e a riqueza, de condenação. O importante é ser pobre de espírito, isto é, diante das riquezas ou da possessão de bens, nunca se apegar. E diante das provações, rejeições e contingências da vida, aceitá-las com inteira resignação. Eis a fundamental lição desta parábola: “o bom relacionamento entre ricos e pobres, e de ambos com Deus, no uso dos bens ou na aceitação das situações constrangedoras pelas quais passem”.9 Sejamos, pois, pobres de espírito para que, quando chegar o momento supremo de nosso encontro com Deus, tenhamos a alma com as disposições de Lázaro, desapegados de todos os bens terrenos, resignados diante de qualquer infortúnio, perseverantes na oração e na prática da virtude para sermos recebidos pelos anjos na eternidade. Por Irmã Patrícia Victoria Jorge Villegas, EP (Do Instituo Filosáfico-Teológico Santa Escolástica – IFTE) ……………………………………….. 1 CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O pobre e o rico. Arautos do Evangelho. São Paulo: Ano XI, n.33, set. 2004, p. 10. 2 SANTO AMBROSIO, apud, SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. Buenos Aires: v. IV, p. 388. 3 Loc. cit. 4 SANTO AMBROSIO, apud, SÃO TOMÁS DE AQUINO. Op. Cit. p.389 5 CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Op. Cit. p. 9. 6 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, apud, SÃO TOMÁS DE AQUINO. Op. Cit. p. 392. 7 CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Op. Cit. p. 10. 8 Loc. Cit. 9 Ibid.p. 11