Não. Não falarei daquela criança recém nascida, jogada do alto de uma ponte no subúrbio do Rio, mas que sobreviveu mesmo dentro da água. Nem daquela envolta num saco de lixo e atirada nas plácidas águas do lago de Pampulha, que espantou o mundo com seu choro débil e sua pertinência pela vida. Nem de tantos outros bebês que a atrocidade humana tem atirado pelas janelas, esgotos e sanitários de uma sociedade distante de Deus e da nobreza de sua Criação. Não. O que me motiva hoje são reminiscências de uma infância já distante. Quem, afinal, não as possui? Minhas recordações passam pelas primeiras “carteiras” escolares que ocupei na vida, duplas ainda, com saliências para se colocar nossos lápis e nossos tinteiros onde embebíamos a caneta bico de pato, pois que esferográfica ainda era um palavrão inexistente. Meu primeiro dia de aula fez meu coração pulsar quase à boca, atônito que estava diante de um mundo totalmente estranho e colegas idem. Mas eis que surge nossa primeira professora, sorridente e simpática, cuja presença logo desanuviou as tensões da classe. A nobreza que hoje me inspira deu-se logo a conhecer. Paciência e autoridade de um lado e respeito e admiração do outro. Sem dizer da sede de aprendizado que preenchia meu orgulho por cursar o primeiro ano primário. Enfim, era estudante! Enfim, trilhava os primeiros passos de uma longa estrada, envolvido com os mistérios e a arte da palavra escrita. A palmatória, o chapéu de asno, o tapete de tampinhas de garrafas, isso tudo ficou apenas nas lembranças quase folclóricas de uma metodologia onde o respeito falava mais alto do que eventuais insubordinações. Castigo maior era a vergonha de ser pego em procedimento contrário à disciplina escolar. Deu no que deu: tornei-me um cronista da vida. Vergonha maior é avaliar o sistema de ensino dos dias atuais e nele encontrar total ausência de disciplina ou mesmo respeito à figura dos mestres. Estes que são humilhados ou ameaçados quando exigem um pouco mais. Estes que adentram suas salas de aulas, preocupados não com a matéria que ministram, mas com a própria integridade física, posta em jogo diante de qualquer cobrança mais severa, qualquer nota abaixo das necessidades dos alunos, qualquer crítica ou exigência maior no desempenho da classe. Alunos, já diplomados no primeiro grau (e até segundo grau), hoje retornam aos exercícios da cartilha, porque a linguagem digital lhes roubou a arte da escrita manual. Pode? Pois são muitos os analfabetos da simples caligrafia do próprio nome. Matemática, tabuada? Pra que tudo isso se temos acesso fácil às milagrosas calculadoras manuais? História, geografia? Matérias de babacas, pois pouco uso dela se faz no mundo do trabalho… Artes plásticas, desenho? Trarão algum benefício na minha vida profissional? Assim, por exclusão, o currículo escolar vai se moldando aos interesses do profissional do futuro, que sequer conhece o próprio futuro. Como se a arte de ensino estivesse subordinada ao gosto do aprendiz e a função do professor não fosse outra senão preencher esse vazio, de acordo com as exigências de uma cultura individualizada, nunca contextualizada no ambiente social. Onde a nobreza dos conhecimentos gerais, do respeito às suas tradições, à própria história? Nada mais natural que recordar aqui aquela que me ensinou o be-a-bá e me fez cantar as maravilhas das dez tabuadas. Nada como ter bem presente a figura daquela mulher austera e exigente, que nas horas de folga também nos convidava para um pequeno lanche em sua humilde casa e lá nos ensinava a arte de confeccionar pequenos trabalhos manuais. Tenho ainda bem viva a lembrança de meu primeiro vaso de cerâmica que aprendi a moldar em sua casa. Ou mesmo o deslumbramento que foi transformar dois caroços de manga em dois sapatinhos de boneca… Ah, como me esquecer da minha primeira professora, Dna. Nenê, que era Nobre até no sobrenome! WAGNER PEDRO MENEZES wagner@meac.com.br