Chão para os pés

Foi no início de minhas pregações missionárias no Meac, nos anos oitenta. Estava em Botucatu, paróquia do pe. Pakito. Convidados a animar o espírito missionário daquela comunidade, minha esposa e eu fomos recepcionados com o fervor de um povo aberto à mensagem. Participaríamos de todas as missas daquele final de semana, fazendo a homilia. Logo na primeira celebração, era visível a expectativa e o preparo daquele povo. Cantavam com verdadeiro ardor. Uma voz se destacava. Uma límpida, maviosa, belíssima e angelical voz. De repente, em meio àquele coro vibrante e coeso, o que me atraia era uma única voz! Procurei distingui-la dentre tantas. Buscava, com uma curiosidade quase infantil, a dona daquela voz maravilhosa. Mas estava diante de uma assembleia harmônica, participativa, unida. Todos cantavam com aquele brilho nos olhos, aquela alegria no coração. Mas quem procura, acha. Achei o que buscava, apesar de um quase susto! À minha frente, logo nos primeiros bancos, estava ela, a dona da voz. Sorriso meigo, olhar de paz sem igual (aquele que transcende nossa realidade, pois está em sintonia com o espiritual), uma jovem “regia” aquela assembleia, animando a todos e coordenando os cantos. Nada de especial, não fosse ela um tronco de gente, na verdadeira acepção da palavra. A voz que me encantava partia de uma jovem deficiente, sem os dois braços, sem as duas pernas… Diante dela, não mais senti o chão a meus pés. Diante daquele testemunho de vida participativa, apesar das limitações, fiquei a questionar minha própria missão. Teria algo a dizer àquela jovem, àquela comunidade? À luz da realidade do Cristo, o Servo Sofredor por excelência, teria, eu, algo mais a acrescentar àquele povo, unido e fortalecido pela liderança de uma jovem sofredora, um Cristo partido que não olhava para suas próprias limitações? Assim conhecemos Fátima Longo, ainda como atuante líder comunitária, cujos pés e mãos eram emprestados de sua tia, já falecida. Naquele mesmo dia visitamos sua casa. Conversamos e trocamos ideias como velhos amigos, de longa data, que possuíam em comum o zelo pela casa de Deus. Ela nos mostrou outras de suas habilidades, tais como a de exímia datilógrafa (usava um lápis apropriado, para “digitar” com a boca) e possuidora de uma das mais belas caligrafias que já conheci. Falou-me de seus vários cursos, sua carreira pedagógica, o domínio de vários idiomas, seu gosto pela culinária. Nela não encontrava mais a impressão primeira, a deficiência que meus olhos humanos apontaram. Era uma extraordinária irmã, de vida e visão missionária sem igual! Desde então, mesmo à distância, acompanho muitos dos seus passos. Mas como, se ela não possui os pés? Pois é, há muitos de nós, com pés e mãos perfeitos, capazes de longas jornadas e largos abraços, que… Bem, não é hora de julgar. Os passos de Fátima são dados com a alma e o coração. Arriscou até mesmo uma participação política na sua cidade, obtendo uma votação expressiva para vereadora (maior que a do prefeito eleito na época). Seus projetos e realizações mereceram o registro da mídia, sendo ela, várias vezes, tema de reportagens e matérias de importantes veículos da imprensa nacional. Chegou a ser capa da revista Família Cristã. Sei que a ausência da tia querida (aquela que era suas mãos e seus pés) restringe o chão palmilhado por essa vida em prol do povo. Fátima nunca pisou nosso chão, nossa realidade. Porém sente suas carências e necessidades como ninguém. Com sua voz, música para nossos ouvidos, marcou sua presença na comunidade. Apesar de muitos não a verem como colírio para os olhos – pois os preconceitos nos impedem de compreender o outro na sua essência – Fátima ainda é chão para muitos pés inseguros. WAGNER PEDRO MENEZES – Meac – 40 anos

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