Criança ainda, já ouvia de meus mestres que o Brasil não passava de um quintal para países ricos, em especial os EUA. Ficava sempre imaginando as alegrias desse quintal, já que naquele tempo nossos quintais e praças interioranas eram paraísos pessoais de uma infância livre, leve e solta. Não se tinha a conotação depreciativa que hoje usamos de que lixo, sujeiras, entulhos, deveriam ser ocultos no fundo dos vastos quintais, longe da vista de turistas e transeuntes ilustres. Beleza, então, só de fachada? Ou é por isso que dizemos lavar nossas roupas sujas na própria casa? Acontece que o conceito classista a dominar a sociedade capitalista, consumista, elitista e outras listas mais nos ensina o contrário: roupa suja vai para a lavanderia – ou no mínimo para a casa da serviçal da casa. Então não poderia ser novidade o flagrante da Vigilância Sanitária do Estado de Pernambuco, que apreendeu no porto de Suape, naquele Estado, dois contêineres com 46 toneladas de lixo hospitalar procedentes dos EUA. Há o histórico de seis outros contêineres desembarcados nesse ano, como também a expectativa de que mais 14 estão a caminho, devendo aportar no Brasil nas próximas horas. Isso não considerando a declaração de um empresário pernambucano de que essa prática já se dá “há mais de trinta anos”. Mais triste ainda é descobrir que esse material era basicamente tecido de algodão, a maior e mais usada matéria prima do artesanato em tecidos que o povo nordestino produz tradicionalmente. Lençóis hospitalares viram panos de prato, toalhas para nossa mesa de refeições, fraldas para nossas crianças, vestidos para nossas beldades e fronhas para reparar nossos sonhos de um país com “ordem e progresso”. Sem qualquer preconceito ou prevenção contra possíveis infecções, lençóis americanos podem até continuar como lençóis, bastando tão somente água e sabão, que não ocultam sequer o nome dos hospitais ou instituições das quais procedem. Pode um disparate desses? Pior que pode, pois se trata de importação legal de “tecido com defeito”. Mais que uma simples denúncia – tardia, é verdade – o problema nos leva a uma reflexão e profunda preocupação. Não podemos nos ater ou nos somar ao crescente sentimento de antiamericanismo, hoje um fenômeno que assusta e expõe as raízes do ódio e do preconceito entre nações. Também não nos cabe o silêncio submisso e até consolador de que o mundo sempre agiu assim, de que a sobra da mesa do rico é capaz de alimentar a fome de muitos pobres ou de que “reciclar” está em voga e essa é uma forma inteligente de não devastar ainda mais nosso pobre planeta azul. Preocupa-me a instabilidade de milhões de empregos indiretos e o risco que corre a confecção de artesanatos em tecidos, com uma possível crise nesse setor. Por outro lado, um solavanco de quando em vez é saudável para se restaurar nossos brios pátrios, senão ao menos pessoais. Lembremo-nos: o único lençol manchado de sangue capaz de restaurar um pouco de dignidade entre as pessoas foi aquele que Madalena encontrou num túmulo vazio. O pano da ressurreição, o sudário de Cristo. Desse mesmo Cristo que acolheu aquela pobre criatura que se contentava com as migalhas que caiam da mesa farta de sua misericórdia. “Não convém jogar aos cachorrinhos o pão dos filhos”, provocou Jesus, para obter, diante de todos, uma resposta reveladora: “Certamente, Senhor, mas os cachorrinhos ao menos comem as migalhas que caem da mesa de seus donos” (ver Mt 15,21-28). Eis o fato: pobre orgulhoso é pior que falso rico, pois rejeita até mesmo a mão estendida na hora da queda. Mas nem por isso se vai aceitar a transferência de um problema – no caso a destinação dos dejetos de uma sociedade – que sequer migalhas são, mas lixo mesmo. Ou, repetindo a sabedoria popular: “Não somos donos do mundo, mas filhos do dono”. Por isso, ao menos por isso, merecemos respeito. WAGNER PEDRO MENEZES wagner@meac.com.br