D. Quixote de la Mancha, a maior criação do espanhol Miguel de Cervantes, ao se deparar com enormes moinhos de vento julgou estar diante de ferozes dragões. Disposto a erradicar da face da terra qualquer ameaça à integridade de sua amada Dulcineia, não pensou duas vezes para combater aqueles gigantescos inimigos. Lançou-se contra eles com sua cavalgadura, o asno Rocinante, munido apenas de tosca armadura de latas, além de uma precária lança improvisada. Era preciso destruir aquelas “potestades” terríveis e ameaçadoras que rondavam o reino de sua amada. Deu no que deu: uma fábula aparentemente ridícula, mas que ainda muito nos serve para entender o esforço humano de constante vigília e auto defesa, principalmente quando o perigo que ronda seu território é uma nebulosa gigantesca, não totalmente compreensível aos olhos turvos do povo, esse eterno defensor quixoteano de seus sonhos de amor, liberdade, dignidade. Oh doce néctar do homem simples! Moinhos de vento são hoje os luminosos eletrônicos, cujos painéis assombram o mundo com suas oscilações mercadológicas, seus vai-e-vens em conformidade com o humor dos “investidores”, a insegurança monetária de uma economia atrelada aos ventos dos interesses financeiros, da guerra silenciosa de bombas, mas ensurdecedora e fatal pelos tiros e quedas que atingem a muitos. Tudo para tão somente salvaguardar o poderio financeiro de poucos. De suas entranhas emanam as chamas de um inferno globalizado. Dragões, sim, porém mais reais que o singelo moinho de vento e suas tétricas pás a abanar o mundo. Esse dragão da avareza não abana apenas, abala. Sopra sua língua ardente sobre crédulos e incrédulos (credores e devedores), com seu diabólico olhar em brasa, cego, carcomido pela ambição. Tem razão o Papa. Ao se dirigir para as terras de Cervantes, rumo a mais uma Jornada Mundial da Juventude, Bento XVI foi profético: “O homem deve ser colocado no centro da economia. Esta não deve ser medida segundo o maior lucro possível, mas segundo o bem estar de todos”. Dentro do contexto de insegurança monetária dos grandes blocos econômicos, a frase simples parece-nos mais uma afirmativa quixoteana diante do dragão indomável. Mas não. É, ao contrário, uma das afirmativas mais profundas que a voz da Igreja poderia oferecer ao mundo neste momento de crise. Pudera os homens de boa vontade penetrar um pouco mais na revelação que essa verdade contém. Há muito a Economia humana deixa de lado sua prioridade única: o bem estar de todos. Há muito que o centro do objetivo econômico não prioriza o ser humano, mas seu poderio, o lucro acima da dignidade, o status além dos territórios da justiça, da igualdade, da fraternidade universal. O que vemos acontecer no mundo de hoje é a manutenção do poder sem limites, sem critérios, sem medidas que justifiquem suas danosas conseqüências para se preservá-lo. A amada Dulcineia – aquela que representa um sonho de amor, o ideal de uma vida – continua prisioneira dos reinados opressores, de países que priorizam suas soberanias e ignoram o direito à soberania daqueles que ainda acreditam no amor entre os povos. Não. O Papa não fez uma afirmativa utópica. Não é ele um D. Quixote da modernidade, mas luta contra os moinhos que o mundo constrói para si. Bento XVI apenas nos lembra um ensinamento de Jesus: “Que aproveitará ao homem ganhar o mundo todo, se vier a perder a sua alma? Ou que dará um homem em troca de sua alma?” (Mt 16,26). Sua essência, sua dignidade? Ou ainda: “O homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o bem; e o homem mau do mau tesouro tira o mal; porque a boca fala da abundância do coração” (Lc 6,45). WAGNER PEDRO MENEZES wagner@meac.com.br