Ratinhos no armário

Uma antiga fábula nos ensinava a encarar os problemas de frente. Exigia coragem para solucioná-los. Quem não se lembra daquela família de ratos famintos, que atacava diariamente a dispensa de um lar? Mas a faina diária quebrou-se quando um gato foi adotado pelos donos da casa. Tinham pela frente uma ameaça de vida ou morte, pois o bichano estava sempre à espreita. Reuniu-se a família de roedores, buscando uma solução para aquela ameaça. Depois de muito discutirem, eis que um deles propõe um plano perfeito, melhor que qualquer um daqueles muitos do Cebolinha contra a Mônica. Bastava esperar um momento de cochilo do gato e amarrar em seu pescoço um belo e sonoro guizo. Quando o bichano se aproximasse, todos ouviriam o toque do guizo e poderiam fugir com segurança. Perfeito! Mas o Cascão da turma logo jogou água fria sobre todos: Quem vai amarrar o guizo? De planos perfeitos e infalíveis o mundo está cheio. Resta saber quem irá executá-los. Parece-nos que a velha fábula não perdeu seu encanto, nem sua sintonia com a realidade. Seja qual for o problema que nos aflija, torna-se fútil e trivial quando visto de fora, mas quando encarnado, inserido em nosso mundinho particular, torna-se um dramalhão sem limites. Eis porque não podemos menosprezar o problema alheio, nem avaliá-lo com desdém ou qualquer ironia. Só quem vive uma situação conflitante tem as armas necessárias para superá-la. Quando muito, nossa ajuda será meramente opinativa, sugestiva. O resto dependerá do outro. Simplesmente porque é impossível ajudar quem não deseja ser ajudado. Já quando a questão é comunitária, devemos, sim, ouvir a opinião de todos. O sinal de alerta não virá de uma sirene na ponta de uma ogiva nuclear ou de um produto químico dando cor às nuvens tóxicas de muitas armas da imbecilidade humana, ou de um sistema de segurança sofisticado que monitore – mas não neutraliza – a ação dos muitos inimigos da sociedade, ou mesmo de um bloqueador cibernético que evite as espionagens sobre nossos segredos e declarações de alcova. Nada disso. O alimento que cotidianamente buscamos só será sagrado, abençoada, quando envidarmos esforços para merecê-lo. Tanto no campo pessoal quanto no campo comunitário, tudo o que almejamos para nossa sobrevivência deve possuir a áurea da justiça e do bem comum, se quisermos realmente afastar para longe as ameaças que rondam nossos celeiros, nossas fontes de vida e harmonia. Não à toa, Jesus um dia deixou-nos uma afirmativa um tanto quanto enigmática: “Meu alimento é fazer a vontade do Pai e cumprir sua obra” (Jo 4,34). Definiu-nos, com a maestria que lhe era própria, o sentido de sua existência, a missão que era sua e que se estende a todos. Fazer a vontade do Pai é o que sacia e justifica a fome – essa constante humana tanto física quanto espiritual. Não há como ignorar os gatunos que nos cercam. Nem os famintos ao redor. Ainda é de Cristo outro enigma: “Dêem-lhes vós mesmo de comer!” Ora, se o problema é nosso, outra alternativa não nos resta senão encará-lo com pragmatismo e coragem. Um guizo, um sinal espalhafatoso apenas afugentará os covardes. Quem realmente garantirá a visão de um cenário novo para a humanidade, longe da mesquinha vigilância dos poucos que se julgam donos desse celeiro infindo, a seara de Deus? “Levantai os vossos olhos e vede os campos porque já estão brancos para a ceifa” (Jo 4,35). A obra de Deus exige ações práticas, onde todos possam usufruir de um mundo realmente farto, de pão e vinho, esperança e alegria. Um mundo sem necessidades de vigias, seguranças, limites e fronteiras que demarcam um celeiro que é de todos. “Ouvi então a voz do Senhor que dizia: ‘Quem enviarei eu? Quem irá por nós’?” (Is 6,8). Porque muitos cristãos precisam sair da toca, do armário… WAGNER PEDRO MENEZES wagner@meac.com.br

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